Tuesday, March 01, 2005

Viagens

Thursday, February 10, 2005

A solidão do apaixonado

A solidão do apaixonado não é uma solidão de pessoa (o amor confia-se, fala-se, conta-se), é uma solidão de sistema (talvez porque sou incessantemente abatido pelo solipsismo do meu discurso). Difícil paradoxo: posso ser ouvido por todos (o amor vem dos livros, o seu dialecto é corrente), mas só posso ser escutado (recebido «profeticamente») pelos sujeitos que têm exactamente e presentemente a mesma linguagem que eu. Os apaixonados, diz Alcibíades, assemelham-se aos que foram mordidos por uma víbora: «Não querem, diz-se, falar do seu acidente a ninguém, excepto àqueles que dele já foram vítimas, por serem estes os únicos capazes de compreender e desculpar tudo o que eles ousaram dizer e fazer sob o efeito das dores»: miserável tropa dos «Defuntos famélicos», dos Suicidas de amor (quantas vezes se não suicida um mesmo apaixoando?), a quem nenhuma grande linguagem (se não for, fragmentariamente, a do Romance passado) empresta a voz.

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso

Wednesday, February 09, 2005

É Assim a Música

A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração - por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.

Eugénio de Andrade, Poesia

Tuesday, February 08, 2005

Nota

É que penso que o que decide
sobre o bem e o mal
não é a comunicação
das pessoas entre elas, mas
apenas a maneira das pessoas
se darem consigo próprias.

Jakob Wassermann, Der Fall Maurizius

Monday, February 07, 2005

O Peso da Sombra


Palácio do Buçaco

Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada ao silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade, Poesia

Sunday, February 06, 2005

Imagens de Barcelona I


Templo da Sagrada Família

Saturday, February 05, 2005

Too young to die but too old to survive


Too young to die
But too old to survive -
I've spent too long
Trying to write this song.
The tune is okay
But the words are all wrong -
Maybe its time for a change.

I've lived a lie
Since the day I arrived,
Building my dreams
Grand romantic schemes.
Now I'm 28
But I'm still in my teens -
Well maybe its time for a change.

Now it's time to say goodbye
To my suit, my shirt, my tie.
My youth seems to have passed me by
And I'm too young to die.

I will not weep
For what we leave behind.
I must break free
From that part of me
That values the art
Over the humanity.
I think its time for a change.

I thought that I
Was doing fine
But now I've changed my mind

'Cause now its time to say goodbye
To my suit, my shirt, my tie.
My youth seems to have passed me by
And I'm too young to die.

Too young to die,
Yeah,
Too young,
Too young
Yeah, yeah, yeah!

Maybe its time for a change.

The Divine Comedy, Too Young To Die

Friday, February 04, 2005

Arno Gruen


A atracção da morte só pode ser vencida se uma pessoa sentir mesmo a dor de outrem - e não pela pena de si próprio. Onde ainda existem as possibilidades de tal vivência, atitudes e acções podem mudar - independentemente de situações de perigo exteriores.

Arno Gruen, A Loucura da Normalidade

Thursday, February 03, 2005

Eterno Retorno


Em cada indivíduo a capacidade da dor está determinada de uma vez para sempre; uma medida que não pode ficar vazia, nem ser muito cheia... Se uma grande aflição é de nós afastada, outra imediatamente a substitui, cujo material já lá estava mas não podia subir à consciência por não haver espaço... Agora que se abriu espaço, veio ocupá-lo.
Schopenhauer, vol. I

Aristóteles tinha razão: o sábio não procura o prazer, mas a libertação dos cuidados e da dor.

Wednesday, February 02, 2005

Subjectividades


P0002

Tuesday, February 01, 2005

Roland Barthes (2ª parte)

Continua a transcrição da entrevista a Roland Barthes ao Art Press em Maio de 1977, conduzida por Jacques Henric e publicada no volume 37 da colecção Signos.

Falemos então, se não se importa, destes Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Para evitar possíveis equívocos de leitura, poderia explicar o título?

Preciso fazer, rapidamente a história do projecto. Tinha, continuo a ter, um seminário na Écoles des Hautes Études e como sabe somos vários investigadores e ensaístas a trabalhar sobre a noção de discurso, de discursividade. Noção que se distingue da de língua, de linguagem. Trata-se de discursividade em sentido amplo: a discursividade, a zona da linguagem, é um objecto de análise. Há pouco mais de dois anos, decidi-me a estudar um certo tipo de discurso: o que eu presumia ser o discurso amoroso, estando assente desde o princípio que se tratava de sujeitos apaixonados dependendo do que se chama o amor-paixão, o amor romântico. Decidi portanto fazer um seminário que seria a análise objectiva de um tipo de discursividade. Escolhi então um texto tutor e analisei o discurso amoroso nessa obra. Não a obra em si mesma, mas o discurso amoroso. Foi o Werther de Goethe, que é o próprio arquétipo do amor-paixão. Mas durante os dois anos desse seminário verifiquei um duplo movimento. Primeiramente, apercebi-me que eu próprio me projectava, em nome da minha experiência passada, da minha vida, nalgumas daquelas figuras. Chegava mesmo a misturar figuras que vinham da minha vida com as figuras de Werther.
Segunda verificação: os que assistiam ao seminário projectavam-se, eles próprios, muito fortemente no que era dito. Nessas condições, disse para mim mesmo que, a partir do momento em que passava do seminário ao livro, a honestidade não estava em escrever um tratado sobre o discurso amoroso, pois isso teria sido uma espécie de mentira (já que não aspirava a uma generalidade de tipo científico) mas, pelo contrário, em escrever eu próprio o discurso de um sujeito apaixonado. Houve uma transposição. Evidentemente, a influência de Nietzsche, mesmo que o tenha deformado muito, foi então sensível. Em particular, tudo o que Nietzsche ensina sobre a necessidade de «dramatizar», de adoptar um método de «dramatização» que tinha para mim a vantagem epistemológica de me separar da metalinguagem. A partir de O Prazer do Texto já não posso suportar a dissertação sobre o assunto. Por isso fabriquei, simulei um discurso que é o discurso de um sujeito apaixonado. O título é muito explícito e foi voluntariamente construído: não é um livro sobre o discurso amoroso, é um livro de um sujeito apaixonado. Esse sujeito apaixonado não sou eu forçosamente. Digo-o francamente, há elementos que vem de mim, outros que vem do Werther do Goethe ou leituras culturais que eu fiz, na zona dos místicos, da psicanálise, de Nietzsche... Há também confidências, conversas que provêm de amigos. Estes estão muito presentes neste livro. O resultado é, pois, o discurso de um sujeito que diz eu, que está portanto individualizado ao nível da enunciação; mas é apesar disso um discurso composto, simulado ou, se quiser, um discurso «montado» (resultado de uma montagem).

Contudo quem diz «eu» nestes Fragmentos?

A si eu poderia responder e você compreenderá que quem diz «eu» no livro é o eu da escrita. É realmente tudo o que se pode dizer. Naturalmente, sobre esse ponto, podem levar-me a dizer que se trata de mim. Daria então uma resposta ambígua: sou eu e não sou eu. Trata-se tanto de mim, se me permite a comparação talvez enfatuada, como de Stendhal num personagem por ele criado. É nisso que é um texto bastante romanesco. Aliás, a relação entre o autor e o personagem que é posto em cena é do tipo romanesco.

Com efeito, certos «fragmentos» são verdadeiros começos de narrativas. Uma história começa a nascer e é imediatamente interrompida. Muitas vezes me perguntei diante desses começos muito conseguidos, muito «escritos», mas porque é que ele não prossegue? Porque não um verdadeiro romance? Uma verdadeira autobiografia?

Isso há-de acontecer talvez. Há muito tempo que namoro essa ideia. Mas no caso deste livro, se a história nunca engrena é em função diria, de uma doutrina. A visão que tenho do discurso amoroso é uma visão fragmentada, descontínua, borboleteante. São episódios de linguagem que volteiam na cabeça do sujeito enamorado, apaixonado, e esses episódios interrompem-se bruscamente por causa desta ou daquela circunstância, ciúme, encontro falhado, espera insuportável, que intervém, e nesse momento essa espécie de bocados de monólogos são quebrados e passa-se a outra figura. Respeitei o descontínuo radical dessa tormenta de linguagem que se desencadeia, na cabeça do apaixonado. Foi por isso que dividi o conjunto em fragmentos e os pus por ordem alfabética. Não queria de forma nenhuma que o livro se parecesse com uma história de amor. A minha convicção é de que a história de amor bem construída, com um princípio e um fim, e uma crise no meio, é a forma que a sociedade oferece ao sujeito apaixonado de se reconciliar de algum modo com a linguagem do grande Outro, construindo para si próprio uma narrativa na qual se coloca. Estou convencido de que o apaixonado que sofre não tem sequer o privilégio desta reconciliação e não está, paradoxalmente, na história de amor; ele está noutra coisa que se parece muito com a loucura, não é por acaso que se fala de apaixonados loucos, é que a história é impossível do ponto de vista do sujeito apaixonado. Eu procurei portanto, constantemente, quebrar a construção da história. Num certo momento cheguei mesmo a pensar colocar no início uma figura que tem um valor de fundação inicial, a paixão súbita, o enamoramento, o êxtase; hesitei muito e disse para comigo que não, mesmo essa não posso jurar que seja cronologicamente uma primeira figura porque é muito possível que essa paixão súbita, afinal, funcione apenas como fora de tempo, como algo que o sujeito apaixonado conta a si próprio. É portanto um livro descontínuo que protesta um pouco contra a história de amor.

Que quer dizer quando escreve: «eu estou ao lado da escrita»?

Primeiro uma digressão: apercebi-me de que havia dois tipos de sujeito apaixonado. Há o da literatura francesa, de Racine a Proust, que é, digamos, paranóico, o ciumento. Há um outro que não existe propriamente na literatura francesa mas que foi admiravelmente recriado pelo romantismo alemão e nomeadamente nos lieder de Schubert e Schumann (de que falo, aliás, no livro). Este é um tipo de apaixonado que não está centrado no ciúme; o ciúme não está excluído deste amor-paixão, mas é um sentimento amoroso que é muito mais efusivo, que visa uma cumulação. A figura essencial é então a Mãe. Uma das figuras do meu livro diz respeito, precisamente, ao desejo, à tentação, à pulsão que o sujeito apaixonado tem, muitas vezes, ao que parece, e é atestado nos livros, de criar, pintar, ou escrever para o objecto amado. Eu tento então exprimir o profundo pessimismo que se pode ter nesse plano, ou seja o discurso do sujeito apaixonado não pode tornar-se uma escrita sem enormes abandonos e transformações.
O meu pensamento profundo sobre o sujeito apaixonado é o de que ele é um marginal. Daí a minha decisão de publicar este livro, de algum modo, como uma forma de dar voz a uma marginalidade tanto mais forte quanto, actualmente, não está sequer na moda dos marginais. Um livro sobre o discurso amoroso é muito mais kitsch que um livro sobre drogados por exemplo.

Não é necessária uma certa audácia para falar do amor como você o faz, face ao discurso psicanalítico dominante?

Há com efeito no meio livro uma relação com o discurso psicanalítico que é, eu diria, «interessante», pois essa relação evoluiu mesmo na altura em que eu fazia o seminário e o livro. Sabe muito bem que, se se interroga a cultura hoje - esse é também um dos argumentos do livro - não há nenhuma grande linguagem que leve em linha de conta o sentimento amoroso. A psicanálise, entre essas grandes linguagens, tentou pelo menos descrições do estado amoroso, há-as em Freud, em Lacan e noutros analistas. Fui obrigado a servir-me dessas descrições, elas eram tópicos, solicitavam-me, de tal modo eram pertinentes. Dou conta delas no livro porque o sujeito apaixonado que eu ponho em cena é um sujeito que tem uma cultura de hoje incluindo portanto um pouco de psicanálise que ele aplica a si próprio, de uma forma selvagem. Mas à medida que se desenrolava o discurso simulado do apaixonado, este discurso desenvolvia-se como a afirmação de um valor, o amor como uma ordem de valores afirmativos que faz frente a todos os ataques. Neste momento, ao sujeito apaixonado só resta separar-se do discurso analítico na medida em que este fala, é certo, do sentimento amoroso, mas de uma forma, finalmente, sempre depreciativa, convidando o sujeito a reintegrar uma certa normalidade, a separar «estar apaixonado» de «amar» e «amar bem», etc. Há uma normalidade do sentimento amoroso na psicanálise que é de facto a reivindicação do casal, do casal casado mesmo... Portanto a relação que eu tenho neste livro com a psicanálise é muito ambígua: é uma relação que, como sempre, utiliza descrições, noções psicanalíticas, mas que as utiliza um pouco como elementos de uma ficção não forçosamente credível.

Nunca, como ao lê-lo, tive tanto a impressão de que a escrita, em profundidade, está ligada à ética. Insistiu nesse ponto na sua lição inaugural no Collège de France. Gostaria que o retomasse...

É uma bela pergunta. Mas não consigo discernir bem essa questão e apenas posso dizer-lhe que sinto a escrita deste livro de uma forma um pouco especial. Dado o assunto, eu era chamado a proteger este livro. Para proteger este discurso que se pronunciava em nome do «eu», o que é, apesar de tudo, um risco, a minha maior protecção foi a língua pura ou, diria mesmo, precisamente, a sintaxe. Senti até que ponto a sintaxe podia proteger aquele que falava. É uma arma de dois gumes porque também pode ser um instrumento de repressão - e é-o muitas vezes -, mas quando sujeito está muito desarmado, muito exposto, muito só, a sintaxe protege-o. Este livro é bastante sintáctico, quer dizer, é uma escrita pouco lírica, bastante litótica, bastante elíptica, onde não há grandes invenções de palavras, neologismos, mas onde há uma atenção ao cerne da frase. É nesse momento que a escrita funciona de algum modo como uma moral que teria, de preferência, os seus modelos de agnosticismo, do cepticismo, das morais que não são morais da fé.


Roland Barthes, O Grão da Voz

Saturday, January 29, 2005

Roland Barthes



O Alphabeta7703 tem uma predilecção pelo livro Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Isto porque, como afirma o autor no início da obra, "o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Este discurso é talvez falado por milhares de pessoas (quem o sabe?), mas não é defendido por ninguém. Está completamente banido das linguagens circundantes: ignorado, desacreditado ou ridicularizado por elas, cortado não somente do poder, mas também dos seus mecanismos (ciências, conhecimentos, artes)".

A colecção Signos da edições 70 publicou vários livros de Roland Barthes incluindo o já mencionado Fragmentos de um Discurso Amoroso. O volume 37 desta colecção recolhe a quase totalidade das entrevistas dadas por Roland Barthes em francês, entre 1962 e 1980. E é deste número que apresento a entrevista dada ao Art Press em Maio de 1977 por ocasião do lançamento de Fragmentos de um Discurso Amoroso. A entrevista foi traduzida por Teresa Meneses e Alexandre Melo.

Dentro de dias será lançado um novo livro de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, nas Éditions du Seuil (colecção «Tel Quel»).
Roland Barthes aceitou responder às nossas perguntas. Como situa, hoje em dia, o seu trabalho? Que lugar tem a sensação de ocupar no actual debate das ideias? Porquê, neste momento, um livro sobre o discurso amoroso? Que papel desempenha o elemento autobiográfico? Que relação existe entre escrita e estética?

Roland Barthes, parece-me que desde O Grau Zero da Escrita, desde Mitologias, e de livro em livro, você vem-se tornando um autor cada vez menos localizável. Lançando uma vista de olhos retrospectivamente sobre o seu trabalho passado, como se situa na história do pensamento destes últimos anos? E que lugar tem a sensação de ocupar no debate de ideias actualmente em curso?

Há, precisamente nestes fragmentos do discurso amoroso, de um discurso amoroso, uma figura que tem um nome grego, o adjectivo que se aplicava a Sócrates. Dizia-se que Sócrates era atopos, quer dizer «sem lugar», inclassificável. É um adjectivo que eu aproximo sobretudo do objecto amado, tanto mais que, enquanto sujeito apaixonado simulado no livro, não saberia reconhecer-me como atopos mas, pelo contrário, como uma pessoa banal cujo dossier é bem conhecido. Sem tomar posição quanto ao facto de ser inclassificável, devo reconhecer que sempre trabalhei por repentes, por fases, e que há uma espécie de motor, que expliquei um pouco em Roland Barthes, e que é o paradoxo. Quando um conjunto de posições parecem reificar-se, constituir uma situação social um pouco mais precisa, então efectivamente, de forma espontânea e mesmo sem o pensar, sinto o desejo de ir noutra direcção. E é nisso que eu poderia reconhecer-me como um intelectual; sendo a função do intelectual ir sempre noutra direcção quando «as coisas pegam». Quanto à segunda parte da sua pergunta, como me situo agora, não me situo de modo algum como alguém que tenta alcançar a originalidade, mas como alguém que tenta sempre dar uma voz a uma certa marginalidade. O que é um pouco complicado de explicar é que em mim essa reivindicação de marginalidade nunca se faz de uma forma gloriosa. É uma marginalidade que conserva aspectos bastante corteses, bastante ternos - porque não? - e não se lhe pode atribuir uma etiqueta bem definida do movimento actual das ideias.

Há muitas vezes em si, e de maneira explícita, uma dupla reivindicação aparentemente contraditória. Por um lado, manifesta o seu interesse pela modernidade (introdução de Brecht em França, O Nouveau Roman, Tel Quel...), por outro lado gosta de evocar os seus gostos literários tradicionais. Qual é a coerência profunda destas escolhas?

Não sei se há uma coerência profunda, mas é verdadeiramente o meu íntimo. As coisas nem sempre estiveram tão claras em mim como você agora diz e, durante muito tempo, senti-me dividido de forma quase inconfessável entre alguns dos meus gostos, ou do que eu chamaria - porque gosto de definir as coisas em termos de conduta, de preferência a defini-las em termos de gosto - as minhas leituras de noite (o que leio à noite) e que são sempre livros clássicos, e o meu trabalho de dia em que, efectivamente, sem nenhuma espécie de hipocrisia, me sentia extremamente solidário, no plano teórico e crítico, com certos trabalhos da modernidade. Esta contradição continuava a ser um pouco clandestina e foi apenas a partir de O Prazer do Texto que reivindiquei o direito a reconhecer para mim e fazer reconhecer ao leitor certo gosto pela literatura passada. E então, como sempre quando nos reconhecemos o direito de dizer um gosto, a teoria não está longe. E tento, mais ou menos, fazer a teoria desse gosto do passado. Sirvo-me de dois argumentos: primeiramente de uma metáfora. A história caminha em espiral, segundo a imagem de Vico, coisas antigas voltam, mas evidentemente não voltam ao mesmo lugar; em consequência, há gostos, valores, condutas, «escritas», do passado que podem voltar num lugar muito moderno. O segundo argumento está ligado ao trabalho sobre o sujeito apaixonado. Esse sujeito desenvolve-se principalmente num registo que, desde Lacan, se chama o imaginário - e eu reconheço-me como sujeito do imaginário: tenho uma relação viva com a literatura passada porque, justamente, essa literatura fornece-me uma boa relação com a imagem. Por exemplo, a narração, o romance, é uma dimensão do imaginário que existia na literatura «legível»; ao reconhecer o meu apego a essa literatura, reivindico em favor do sujeito imaginário na medida em que esse sujeito está de algum modo deserdado, esmagado pelas duas grandes estruturas psíquicas que mais retiveram a atenção da modernidade, ou seja, a neurose e a psicose. O sujeito imaginário é um parente pobre dessas estruturas porque nunca é nem inteiramente psicótico, nem inteiramente neurótico. Bem vê que, militando discretamente por esse sujeito do imaginário, posso conceder-me o álibi de um trabalho, no fim de contas, bastante avançado, como que uma forma de vanguarda de amanhã, com um pouco de humor...

Não é também quando a modernidade se transforma em discurso hegemónico, em estereótipos, que você, à sua maneira, guarda as suas distâncias? Não há algo de provocação em falar de «amor», tal como havia, ontem, em pleno estruturalismo, em defender o «prazer do texto»?

Sem dúvida, mas não vivo isso como comportamentos tácticos. Simplesmente, como você disse e muito bem, tenho uma espécie de dificuldade profunda em suportar a estereotipia, a elaboração de pequenas linguagens colectivas que eu conheço bem através do meu trabalho num determinado meio, o meio estudantil. Identifico portanto muito facilmente essas linguagens estereotipadas da marginalidade, a estereotipia da não-esterotipia. Oiço-as formarem-se. No princípio, isso pode proporcionar um certo prazer, mas a pouco e pouco começa a pesar. Durante um certo tempo não ouso mudar de rumo e finalmente, muitas vezes por causa de um acidente da minha vida pessoal, ganho coragem para romper com essas linguagens.

Roland Barthes, O Grão da Voz.

[continua num próximo post]

Saturday, January 22, 2005

As Imagens


P0001
Originally uploaded by Arhat2003.
O que me fere são as formas de relação, as imagens; ou antes, o que os outros designam por forma experimento eu como força. A imagem - como o exemplo para o obsessivo - é a própria coisa. O apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim (nada para lá da imagem).

Roland Barthes Fragmentos de um discurso amoroso

Monday, January 10, 2005

O Nome da Rosa

Terminei há pouco tempo a leitura do livro O Nome da Rosa. Um canal de tv por cabo passou recentemente o filme de Jean-Jacques Annaud que faz a adaptação da obra de Umberto Eco. Julgo ser oportuno transcrever neste blogue dedicado a Eugénio de Andrade, Roland Barthes e Arno Gruen o que este último autor redigiu no seu livro A Loucura da Normalidade a propósito desta extraordinária obra.

«O Nome da Rosa, a obra-prima de Umberto Eco, é, entre outras coisas, um estudo sobre a loucura masculina diária nas suas inúmeras manifestações. Como na vida real, também neste romance tudo acontece em nome da «realidade». William, monge viajante em assuntos diplomáticos, dá-nos uma ideia do que motiva o poder masculino: para ultrapassarem o medo da morte, todos esses homens fazem da posse de poder o fim último dos seus actos. Eco demonstra-nos como são diversos os caminhos, e é nisso que consiste a riqueza e o esmero deste livro. Ninguém - exceptuando a única mulher que entra no romance, a linda filha de camponeses que está sedenta de viver - resiste à sedução do poder. Embora todos eles enquanto servidores de Deus na Terra propagandeiem a aceitação do sofrimento, furtam-se ao que esse seu papel implica. São-nos apresentadas todas as variantes da construção de edifícios de poder, mas todas elas têm a mesma finalidade: a de não ter de ser a própria pessoa que sofre.

Bernardo Gui, o caçador de bruxas e cátaros, recorre directamente à violência para subordinar as almas alheias ao seu controlo. Jorge de Burgos, o bibliotecário, considera um livro uma ameaça para a autoridade e faz com que morram todos os que aspirem à sua posse. O livro é como um símbolo do Eu escamoteado, é a fonte da liberdade verdadeira. O que torna este romance tão extraordinariamente fascinante em qualquer parte do mundo deve ser o facto de ele desmascarar a loucura masculina, embora a maioria dos leitores não deva ter consciência disso. É como se pudéssemos saborear um pouco dessa loucura, a presenciássemos um pouco, para depois voltarmos a pousar o livro com a sensação de ter participado numa realidade assombrosa mas excitante.

No inquisidor Bernardo Gui, Eco retrata o carácter de um homem para quem o poder é o valor supremo. Homens desse calibre não têm em mente a justiça quando perseguem e põem em tribunal pessoas cujas opiniões divergem das delas, nem sequer no âmbito da lógica da sua própria ideologia. Apenas procuram vítimas para sustento da aparência de «justiça». Assim nem lhes interessa o verdadeiro prevaricador. Precisam apenas - tal como Bernardo Gui no romance - de um tipo qualquer para condenar e punir. O que importa não é encontrar o verdadeiro culpado, mas sim uma válvula de escape para a agressividade e pulsões de vingança. A história jurídica de todas as sociedades - mas sobretudo dos estados totalitários - está repleta de tais perversões. Bernard chega a impedir William de encontrar na abadia o verdadeiro assassino. A persecução de outras pessoas é só uma das charadas de uma estratégia de poder mais ampla. Eco teve conhecimento intuitivo de como pessoas sedentas de poder levam as suas vítimas a colaborar com elas. (...)

Eco faz Bernardo percorrer todo o leque de colaborações na própria subjugação: as vítimas têm medo e ao mesmo tempo esperança de que ele se digne perdoar-lhes os delitos que lhes imputou: «Além disso, Bernard Gui sabia muito bem como transformar o medo das suas vítimas em pânico. Ficava em silêncio e fitava o acusado, e esse olhar continha um misto de complacência fingida (como se quisesse dizer: "Não tenhas medo, estás aqui perante a assembleia fraterna dos teus pares que não pode senão querer o melhor para ti"), de ironia gélida (como se quisesse dizer: "Ainda não sabes o que é o melhor para ti, mas eu já te digo") e de uma severidade impiedosa (como se quisesse dizer: "Em todo o caso sou o teu único juiz e tu és meu")». Eco faz-nos aqui viver o terror e a chantagem emocional que é muito semelhante com a situação de infância e demonstra como a vítima volta a deixar-se tentar. Transforma-se na ferramenta do torturador, tal como em criança foi a dos pais. Continua a viver na fantasia de ser salva pela má mãe ou pelo mau pai. Tal dependência torna-se uma maldição porque impede que se perceba que uma pessoa só pode salvar-se a si própria descobrindo o seu Eu verdadeiro.

Eco também sabia que o medo é o cerne da escravização de si próprio e que a capacidade de rir-se de si próprio lhe tira a violência. Por isso, Jorge tem de destruir o livro em nome de Cristo, porque nele se fala do riso e o riso poderia anular o medo do medo. Jorge quer ter esse medo nas suas mãos, qual arma poderosa para manter a humanidade subjugada. Ninguém deve ler a segunda parte da Poética de Aristóteles - sobre a qual só há conjecturas, mas que Eco faz existir até à sua destruição no mar de chamas que consome a abadia - porque o riso aponta a direcção a seguir para sair do círculo vicioso da escravização. A loucura de Jorge e a malvadez com que ele persegue o seu fim permanecem, evidentemente, ocultos debaixo do manto da piedade.»

Friday, January 07, 2005

A Paixão

Levanto a custo os olhos da página;
ardem;
ardem cegos de tanta neve.
Faz dó esta paixão pelo silêncio,
pelo sussurro do silêncio,
pelo ardor
do silêncio que só os dedos adivinham.
Cegos, também.

Eugénio de Andrade, Poesia