Saturday, January 29, 2005

Roland Barthes



O Alphabeta7703 tem uma predilecção pelo livro Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Isto porque, como afirma o autor no início da obra, "o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Este discurso é talvez falado por milhares de pessoas (quem o sabe?), mas não é defendido por ninguém. Está completamente banido das linguagens circundantes: ignorado, desacreditado ou ridicularizado por elas, cortado não somente do poder, mas também dos seus mecanismos (ciências, conhecimentos, artes)".

A colecção Signos da edições 70 publicou vários livros de Roland Barthes incluindo o já mencionado Fragmentos de um Discurso Amoroso. O volume 37 desta colecção recolhe a quase totalidade das entrevistas dadas por Roland Barthes em francês, entre 1962 e 1980. E é deste número que apresento a entrevista dada ao Art Press em Maio de 1977 por ocasião do lançamento de Fragmentos de um Discurso Amoroso. A entrevista foi traduzida por Teresa Meneses e Alexandre Melo.

Dentro de dias será lançado um novo livro de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, nas Éditions du Seuil (colecção «Tel Quel»).
Roland Barthes aceitou responder às nossas perguntas. Como situa, hoje em dia, o seu trabalho? Que lugar tem a sensação de ocupar no actual debate das ideias? Porquê, neste momento, um livro sobre o discurso amoroso? Que papel desempenha o elemento autobiográfico? Que relação existe entre escrita e estética?

Roland Barthes, parece-me que desde O Grau Zero da Escrita, desde Mitologias, e de livro em livro, você vem-se tornando um autor cada vez menos localizável. Lançando uma vista de olhos retrospectivamente sobre o seu trabalho passado, como se situa na história do pensamento destes últimos anos? E que lugar tem a sensação de ocupar no debate de ideias actualmente em curso?

Há, precisamente nestes fragmentos do discurso amoroso, de um discurso amoroso, uma figura que tem um nome grego, o adjectivo que se aplicava a Sócrates. Dizia-se que Sócrates era atopos, quer dizer «sem lugar», inclassificável. É um adjectivo que eu aproximo sobretudo do objecto amado, tanto mais que, enquanto sujeito apaixonado simulado no livro, não saberia reconhecer-me como atopos mas, pelo contrário, como uma pessoa banal cujo dossier é bem conhecido. Sem tomar posição quanto ao facto de ser inclassificável, devo reconhecer que sempre trabalhei por repentes, por fases, e que há uma espécie de motor, que expliquei um pouco em Roland Barthes, e que é o paradoxo. Quando um conjunto de posições parecem reificar-se, constituir uma situação social um pouco mais precisa, então efectivamente, de forma espontânea e mesmo sem o pensar, sinto o desejo de ir noutra direcção. E é nisso que eu poderia reconhecer-me como um intelectual; sendo a função do intelectual ir sempre noutra direcção quando «as coisas pegam». Quanto à segunda parte da sua pergunta, como me situo agora, não me situo de modo algum como alguém que tenta alcançar a originalidade, mas como alguém que tenta sempre dar uma voz a uma certa marginalidade. O que é um pouco complicado de explicar é que em mim essa reivindicação de marginalidade nunca se faz de uma forma gloriosa. É uma marginalidade que conserva aspectos bastante corteses, bastante ternos - porque não? - e não se lhe pode atribuir uma etiqueta bem definida do movimento actual das ideias.

Há muitas vezes em si, e de maneira explícita, uma dupla reivindicação aparentemente contraditória. Por um lado, manifesta o seu interesse pela modernidade (introdução de Brecht em França, O Nouveau Roman, Tel Quel...), por outro lado gosta de evocar os seus gostos literários tradicionais. Qual é a coerência profunda destas escolhas?

Não sei se há uma coerência profunda, mas é verdadeiramente o meu íntimo. As coisas nem sempre estiveram tão claras em mim como você agora diz e, durante muito tempo, senti-me dividido de forma quase inconfessável entre alguns dos meus gostos, ou do que eu chamaria - porque gosto de definir as coisas em termos de conduta, de preferência a defini-las em termos de gosto - as minhas leituras de noite (o que leio à noite) e que são sempre livros clássicos, e o meu trabalho de dia em que, efectivamente, sem nenhuma espécie de hipocrisia, me sentia extremamente solidário, no plano teórico e crítico, com certos trabalhos da modernidade. Esta contradição continuava a ser um pouco clandestina e foi apenas a partir de O Prazer do Texto que reivindiquei o direito a reconhecer para mim e fazer reconhecer ao leitor certo gosto pela literatura passada. E então, como sempre quando nos reconhecemos o direito de dizer um gosto, a teoria não está longe. E tento, mais ou menos, fazer a teoria desse gosto do passado. Sirvo-me de dois argumentos: primeiramente de uma metáfora. A história caminha em espiral, segundo a imagem de Vico, coisas antigas voltam, mas evidentemente não voltam ao mesmo lugar; em consequência, há gostos, valores, condutas, «escritas», do passado que podem voltar num lugar muito moderno. O segundo argumento está ligado ao trabalho sobre o sujeito apaixonado. Esse sujeito desenvolve-se principalmente num registo que, desde Lacan, se chama o imaginário - e eu reconheço-me como sujeito do imaginário: tenho uma relação viva com a literatura passada porque, justamente, essa literatura fornece-me uma boa relação com a imagem. Por exemplo, a narração, o romance, é uma dimensão do imaginário que existia na literatura «legível»; ao reconhecer o meu apego a essa literatura, reivindico em favor do sujeito imaginário na medida em que esse sujeito está de algum modo deserdado, esmagado pelas duas grandes estruturas psíquicas que mais retiveram a atenção da modernidade, ou seja, a neurose e a psicose. O sujeito imaginário é um parente pobre dessas estruturas porque nunca é nem inteiramente psicótico, nem inteiramente neurótico. Bem vê que, militando discretamente por esse sujeito do imaginário, posso conceder-me o álibi de um trabalho, no fim de contas, bastante avançado, como que uma forma de vanguarda de amanhã, com um pouco de humor...

Não é também quando a modernidade se transforma em discurso hegemónico, em estereótipos, que você, à sua maneira, guarda as suas distâncias? Não há algo de provocação em falar de «amor», tal como havia, ontem, em pleno estruturalismo, em defender o «prazer do texto»?

Sem dúvida, mas não vivo isso como comportamentos tácticos. Simplesmente, como você disse e muito bem, tenho uma espécie de dificuldade profunda em suportar a estereotipia, a elaboração de pequenas linguagens colectivas que eu conheço bem através do meu trabalho num determinado meio, o meio estudantil. Identifico portanto muito facilmente essas linguagens estereotipadas da marginalidade, a estereotipia da não-esterotipia. Oiço-as formarem-se. No princípio, isso pode proporcionar um certo prazer, mas a pouco e pouco começa a pesar. Durante um certo tempo não ouso mudar de rumo e finalmente, muitas vezes por causa de um acidente da minha vida pessoal, ganho coragem para romper com essas linguagens.

Roland Barthes, O Grão da Voz.

[continua num próximo post]

Saturday, January 22, 2005

As Imagens


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Originally uploaded by Arhat2003.
O que me fere são as formas de relação, as imagens; ou antes, o que os outros designam por forma experimento eu como força. A imagem - como o exemplo para o obsessivo - é a própria coisa. O apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim (nada para lá da imagem).

Roland Barthes Fragmentos de um discurso amoroso

Monday, January 10, 2005

O Nome da Rosa

Terminei há pouco tempo a leitura do livro O Nome da Rosa. Um canal de tv por cabo passou recentemente o filme de Jean-Jacques Annaud que faz a adaptação da obra de Umberto Eco. Julgo ser oportuno transcrever neste blogue dedicado a Eugénio de Andrade, Roland Barthes e Arno Gruen o que este último autor redigiu no seu livro A Loucura da Normalidade a propósito desta extraordinária obra.

«O Nome da Rosa, a obra-prima de Umberto Eco, é, entre outras coisas, um estudo sobre a loucura masculina diária nas suas inúmeras manifestações. Como na vida real, também neste romance tudo acontece em nome da «realidade». William, monge viajante em assuntos diplomáticos, dá-nos uma ideia do que motiva o poder masculino: para ultrapassarem o medo da morte, todos esses homens fazem da posse de poder o fim último dos seus actos. Eco demonstra-nos como são diversos os caminhos, e é nisso que consiste a riqueza e o esmero deste livro. Ninguém - exceptuando a única mulher que entra no romance, a linda filha de camponeses que está sedenta de viver - resiste à sedução do poder. Embora todos eles enquanto servidores de Deus na Terra propagandeiem a aceitação do sofrimento, furtam-se ao que esse seu papel implica. São-nos apresentadas todas as variantes da construção de edifícios de poder, mas todas elas têm a mesma finalidade: a de não ter de ser a própria pessoa que sofre.

Bernardo Gui, o caçador de bruxas e cátaros, recorre directamente à violência para subordinar as almas alheias ao seu controlo. Jorge de Burgos, o bibliotecário, considera um livro uma ameaça para a autoridade e faz com que morram todos os que aspirem à sua posse. O livro é como um símbolo do Eu escamoteado, é a fonte da liberdade verdadeira. O que torna este romance tão extraordinariamente fascinante em qualquer parte do mundo deve ser o facto de ele desmascarar a loucura masculina, embora a maioria dos leitores não deva ter consciência disso. É como se pudéssemos saborear um pouco dessa loucura, a presenciássemos um pouco, para depois voltarmos a pousar o livro com a sensação de ter participado numa realidade assombrosa mas excitante.

No inquisidor Bernardo Gui, Eco retrata o carácter de um homem para quem o poder é o valor supremo. Homens desse calibre não têm em mente a justiça quando perseguem e põem em tribunal pessoas cujas opiniões divergem das delas, nem sequer no âmbito da lógica da sua própria ideologia. Apenas procuram vítimas para sustento da aparência de «justiça». Assim nem lhes interessa o verdadeiro prevaricador. Precisam apenas - tal como Bernardo Gui no romance - de um tipo qualquer para condenar e punir. O que importa não é encontrar o verdadeiro culpado, mas sim uma válvula de escape para a agressividade e pulsões de vingança. A história jurídica de todas as sociedades - mas sobretudo dos estados totalitários - está repleta de tais perversões. Bernard chega a impedir William de encontrar na abadia o verdadeiro assassino. A persecução de outras pessoas é só uma das charadas de uma estratégia de poder mais ampla. Eco teve conhecimento intuitivo de como pessoas sedentas de poder levam as suas vítimas a colaborar com elas. (...)

Eco faz Bernardo percorrer todo o leque de colaborações na própria subjugação: as vítimas têm medo e ao mesmo tempo esperança de que ele se digne perdoar-lhes os delitos que lhes imputou: «Além disso, Bernard Gui sabia muito bem como transformar o medo das suas vítimas em pânico. Ficava em silêncio e fitava o acusado, e esse olhar continha um misto de complacência fingida (como se quisesse dizer: "Não tenhas medo, estás aqui perante a assembleia fraterna dos teus pares que não pode senão querer o melhor para ti"), de ironia gélida (como se quisesse dizer: "Ainda não sabes o que é o melhor para ti, mas eu já te digo") e de uma severidade impiedosa (como se quisesse dizer: "Em todo o caso sou o teu único juiz e tu és meu")». Eco faz-nos aqui viver o terror e a chantagem emocional que é muito semelhante com a situação de infância e demonstra como a vítima volta a deixar-se tentar. Transforma-se na ferramenta do torturador, tal como em criança foi a dos pais. Continua a viver na fantasia de ser salva pela má mãe ou pelo mau pai. Tal dependência torna-se uma maldição porque impede que se perceba que uma pessoa só pode salvar-se a si própria descobrindo o seu Eu verdadeiro.

Eco também sabia que o medo é o cerne da escravização de si próprio e que a capacidade de rir-se de si próprio lhe tira a violência. Por isso, Jorge tem de destruir o livro em nome de Cristo, porque nele se fala do riso e o riso poderia anular o medo do medo. Jorge quer ter esse medo nas suas mãos, qual arma poderosa para manter a humanidade subjugada. Ninguém deve ler a segunda parte da Poética de Aristóteles - sobre a qual só há conjecturas, mas que Eco faz existir até à sua destruição no mar de chamas que consome a abadia - porque o riso aponta a direcção a seguir para sair do círculo vicioso da escravização. A loucura de Jorge e a malvadez com que ele persegue o seu fim permanecem, evidentemente, ocultos debaixo do manto da piedade.»

Friday, January 07, 2005

A Paixão

Levanto a custo os olhos da página;
ardem;
ardem cegos de tanta neve.
Faz dó esta paixão pelo silêncio,
pelo sussurro do silêncio,
pelo ardor
do silêncio que só os dedos adivinham.
Cegos, também.

Eugénio de Andrade, Poesia