Monday, January 10, 2005

O Nome da Rosa

Terminei há pouco tempo a leitura do livro O Nome da Rosa. Um canal de tv por cabo passou recentemente o filme de Jean-Jacques Annaud que faz a adaptação da obra de Umberto Eco. Julgo ser oportuno transcrever neste blogue dedicado a Eugénio de Andrade, Roland Barthes e Arno Gruen o que este último autor redigiu no seu livro A Loucura da Normalidade a propósito desta extraordinária obra.

«O Nome da Rosa, a obra-prima de Umberto Eco, é, entre outras coisas, um estudo sobre a loucura masculina diária nas suas inúmeras manifestações. Como na vida real, também neste romance tudo acontece em nome da «realidade». William, monge viajante em assuntos diplomáticos, dá-nos uma ideia do que motiva o poder masculino: para ultrapassarem o medo da morte, todos esses homens fazem da posse de poder o fim último dos seus actos. Eco demonstra-nos como são diversos os caminhos, e é nisso que consiste a riqueza e o esmero deste livro. Ninguém - exceptuando a única mulher que entra no romance, a linda filha de camponeses que está sedenta de viver - resiste à sedução do poder. Embora todos eles enquanto servidores de Deus na Terra propagandeiem a aceitação do sofrimento, furtam-se ao que esse seu papel implica. São-nos apresentadas todas as variantes da construção de edifícios de poder, mas todas elas têm a mesma finalidade: a de não ter de ser a própria pessoa que sofre.

Bernardo Gui, o caçador de bruxas e cátaros, recorre directamente à violência para subordinar as almas alheias ao seu controlo. Jorge de Burgos, o bibliotecário, considera um livro uma ameaça para a autoridade e faz com que morram todos os que aspirem à sua posse. O livro é como um símbolo do Eu escamoteado, é a fonte da liberdade verdadeira. O que torna este romance tão extraordinariamente fascinante em qualquer parte do mundo deve ser o facto de ele desmascarar a loucura masculina, embora a maioria dos leitores não deva ter consciência disso. É como se pudéssemos saborear um pouco dessa loucura, a presenciássemos um pouco, para depois voltarmos a pousar o livro com a sensação de ter participado numa realidade assombrosa mas excitante.

No inquisidor Bernardo Gui, Eco retrata o carácter de um homem para quem o poder é o valor supremo. Homens desse calibre não têm em mente a justiça quando perseguem e põem em tribunal pessoas cujas opiniões divergem das delas, nem sequer no âmbito da lógica da sua própria ideologia. Apenas procuram vítimas para sustento da aparência de «justiça». Assim nem lhes interessa o verdadeiro prevaricador. Precisam apenas - tal como Bernardo Gui no romance - de um tipo qualquer para condenar e punir. O que importa não é encontrar o verdadeiro culpado, mas sim uma válvula de escape para a agressividade e pulsões de vingança. A história jurídica de todas as sociedades - mas sobretudo dos estados totalitários - está repleta de tais perversões. Bernard chega a impedir William de encontrar na abadia o verdadeiro assassino. A persecução de outras pessoas é só uma das charadas de uma estratégia de poder mais ampla. Eco teve conhecimento intuitivo de como pessoas sedentas de poder levam as suas vítimas a colaborar com elas. (...)

Eco faz Bernardo percorrer todo o leque de colaborações na própria subjugação: as vítimas têm medo e ao mesmo tempo esperança de que ele se digne perdoar-lhes os delitos que lhes imputou: «Além disso, Bernard Gui sabia muito bem como transformar o medo das suas vítimas em pânico. Ficava em silêncio e fitava o acusado, e esse olhar continha um misto de complacência fingida (como se quisesse dizer: "Não tenhas medo, estás aqui perante a assembleia fraterna dos teus pares que não pode senão querer o melhor para ti"), de ironia gélida (como se quisesse dizer: "Ainda não sabes o que é o melhor para ti, mas eu já te digo") e de uma severidade impiedosa (como se quisesse dizer: "Em todo o caso sou o teu único juiz e tu és meu")». Eco faz-nos aqui viver o terror e a chantagem emocional que é muito semelhante com a situação de infância e demonstra como a vítima volta a deixar-se tentar. Transforma-se na ferramenta do torturador, tal como em criança foi a dos pais. Continua a viver na fantasia de ser salva pela má mãe ou pelo mau pai. Tal dependência torna-se uma maldição porque impede que se perceba que uma pessoa só pode salvar-se a si própria descobrindo o seu Eu verdadeiro.

Eco também sabia que o medo é o cerne da escravização de si próprio e que a capacidade de rir-se de si próprio lhe tira a violência. Por isso, Jorge tem de destruir o livro em nome de Cristo, porque nele se fala do riso e o riso poderia anular o medo do medo. Jorge quer ter esse medo nas suas mãos, qual arma poderosa para manter a humanidade subjugada. Ninguém deve ler a segunda parte da Poética de Aristóteles - sobre a qual só há conjecturas, mas que Eco faz existir até à sua destruição no mar de chamas que consome a abadia - porque o riso aponta a direcção a seguir para sair do círculo vicioso da escravização. A loucura de Jorge e a malvadez com que ele persegue o seu fim permanecem, evidentemente, ocultos debaixo do manto da piedade.»

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