Tuesday, February 01, 2005

Roland Barthes (2ª parte)

Continua a transcrição da entrevista a Roland Barthes ao Art Press em Maio de 1977, conduzida por Jacques Henric e publicada no volume 37 da colecção Signos.

Falemos então, se não se importa, destes Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Para evitar possíveis equívocos de leitura, poderia explicar o título?

Preciso fazer, rapidamente a história do projecto. Tinha, continuo a ter, um seminário na Écoles des Hautes Études e como sabe somos vários investigadores e ensaístas a trabalhar sobre a noção de discurso, de discursividade. Noção que se distingue da de língua, de linguagem. Trata-se de discursividade em sentido amplo: a discursividade, a zona da linguagem, é um objecto de análise. Há pouco mais de dois anos, decidi-me a estudar um certo tipo de discurso: o que eu presumia ser o discurso amoroso, estando assente desde o princípio que se tratava de sujeitos apaixonados dependendo do que se chama o amor-paixão, o amor romântico. Decidi portanto fazer um seminário que seria a análise objectiva de um tipo de discursividade. Escolhi então um texto tutor e analisei o discurso amoroso nessa obra. Não a obra em si mesma, mas o discurso amoroso. Foi o Werther de Goethe, que é o próprio arquétipo do amor-paixão. Mas durante os dois anos desse seminário verifiquei um duplo movimento. Primeiramente, apercebi-me que eu próprio me projectava, em nome da minha experiência passada, da minha vida, nalgumas daquelas figuras. Chegava mesmo a misturar figuras que vinham da minha vida com as figuras de Werther.
Segunda verificação: os que assistiam ao seminário projectavam-se, eles próprios, muito fortemente no que era dito. Nessas condições, disse para mim mesmo que, a partir do momento em que passava do seminário ao livro, a honestidade não estava em escrever um tratado sobre o discurso amoroso, pois isso teria sido uma espécie de mentira (já que não aspirava a uma generalidade de tipo científico) mas, pelo contrário, em escrever eu próprio o discurso de um sujeito apaixonado. Houve uma transposição. Evidentemente, a influência de Nietzsche, mesmo que o tenha deformado muito, foi então sensível. Em particular, tudo o que Nietzsche ensina sobre a necessidade de «dramatizar», de adoptar um método de «dramatização» que tinha para mim a vantagem epistemológica de me separar da metalinguagem. A partir de O Prazer do Texto já não posso suportar a dissertação sobre o assunto. Por isso fabriquei, simulei um discurso que é o discurso de um sujeito apaixonado. O título é muito explícito e foi voluntariamente construído: não é um livro sobre o discurso amoroso, é um livro de um sujeito apaixonado. Esse sujeito apaixonado não sou eu forçosamente. Digo-o francamente, há elementos que vem de mim, outros que vem do Werther do Goethe ou leituras culturais que eu fiz, na zona dos místicos, da psicanálise, de Nietzsche... Há também confidências, conversas que provêm de amigos. Estes estão muito presentes neste livro. O resultado é, pois, o discurso de um sujeito que diz eu, que está portanto individualizado ao nível da enunciação; mas é apesar disso um discurso composto, simulado ou, se quiser, um discurso «montado» (resultado de uma montagem).

Contudo quem diz «eu» nestes Fragmentos?

A si eu poderia responder e você compreenderá que quem diz «eu» no livro é o eu da escrita. É realmente tudo o que se pode dizer. Naturalmente, sobre esse ponto, podem levar-me a dizer que se trata de mim. Daria então uma resposta ambígua: sou eu e não sou eu. Trata-se tanto de mim, se me permite a comparação talvez enfatuada, como de Stendhal num personagem por ele criado. É nisso que é um texto bastante romanesco. Aliás, a relação entre o autor e o personagem que é posto em cena é do tipo romanesco.

Com efeito, certos «fragmentos» são verdadeiros começos de narrativas. Uma história começa a nascer e é imediatamente interrompida. Muitas vezes me perguntei diante desses começos muito conseguidos, muito «escritos», mas porque é que ele não prossegue? Porque não um verdadeiro romance? Uma verdadeira autobiografia?

Isso há-de acontecer talvez. Há muito tempo que namoro essa ideia. Mas no caso deste livro, se a história nunca engrena é em função diria, de uma doutrina. A visão que tenho do discurso amoroso é uma visão fragmentada, descontínua, borboleteante. São episódios de linguagem que volteiam na cabeça do sujeito enamorado, apaixonado, e esses episódios interrompem-se bruscamente por causa desta ou daquela circunstância, ciúme, encontro falhado, espera insuportável, que intervém, e nesse momento essa espécie de bocados de monólogos são quebrados e passa-se a outra figura. Respeitei o descontínuo radical dessa tormenta de linguagem que se desencadeia, na cabeça do apaixonado. Foi por isso que dividi o conjunto em fragmentos e os pus por ordem alfabética. Não queria de forma nenhuma que o livro se parecesse com uma história de amor. A minha convicção é de que a história de amor bem construída, com um princípio e um fim, e uma crise no meio, é a forma que a sociedade oferece ao sujeito apaixonado de se reconciliar de algum modo com a linguagem do grande Outro, construindo para si próprio uma narrativa na qual se coloca. Estou convencido de que o apaixonado que sofre não tem sequer o privilégio desta reconciliação e não está, paradoxalmente, na história de amor; ele está noutra coisa que se parece muito com a loucura, não é por acaso que se fala de apaixonados loucos, é que a história é impossível do ponto de vista do sujeito apaixonado. Eu procurei portanto, constantemente, quebrar a construção da história. Num certo momento cheguei mesmo a pensar colocar no início uma figura que tem um valor de fundação inicial, a paixão súbita, o enamoramento, o êxtase; hesitei muito e disse para comigo que não, mesmo essa não posso jurar que seja cronologicamente uma primeira figura porque é muito possível que essa paixão súbita, afinal, funcione apenas como fora de tempo, como algo que o sujeito apaixonado conta a si próprio. É portanto um livro descontínuo que protesta um pouco contra a história de amor.

Que quer dizer quando escreve: «eu estou ao lado da escrita»?

Primeiro uma digressão: apercebi-me de que havia dois tipos de sujeito apaixonado. Há o da literatura francesa, de Racine a Proust, que é, digamos, paranóico, o ciumento. Há um outro que não existe propriamente na literatura francesa mas que foi admiravelmente recriado pelo romantismo alemão e nomeadamente nos lieder de Schubert e Schumann (de que falo, aliás, no livro). Este é um tipo de apaixonado que não está centrado no ciúme; o ciúme não está excluído deste amor-paixão, mas é um sentimento amoroso que é muito mais efusivo, que visa uma cumulação. A figura essencial é então a Mãe. Uma das figuras do meu livro diz respeito, precisamente, ao desejo, à tentação, à pulsão que o sujeito apaixonado tem, muitas vezes, ao que parece, e é atestado nos livros, de criar, pintar, ou escrever para o objecto amado. Eu tento então exprimir o profundo pessimismo que se pode ter nesse plano, ou seja o discurso do sujeito apaixonado não pode tornar-se uma escrita sem enormes abandonos e transformações.
O meu pensamento profundo sobre o sujeito apaixonado é o de que ele é um marginal. Daí a minha decisão de publicar este livro, de algum modo, como uma forma de dar voz a uma marginalidade tanto mais forte quanto, actualmente, não está sequer na moda dos marginais. Um livro sobre o discurso amoroso é muito mais kitsch que um livro sobre drogados por exemplo.

Não é necessária uma certa audácia para falar do amor como você o faz, face ao discurso psicanalítico dominante?

Há com efeito no meio livro uma relação com o discurso psicanalítico que é, eu diria, «interessante», pois essa relação evoluiu mesmo na altura em que eu fazia o seminário e o livro. Sabe muito bem que, se se interroga a cultura hoje - esse é também um dos argumentos do livro - não há nenhuma grande linguagem que leve em linha de conta o sentimento amoroso. A psicanálise, entre essas grandes linguagens, tentou pelo menos descrições do estado amoroso, há-as em Freud, em Lacan e noutros analistas. Fui obrigado a servir-me dessas descrições, elas eram tópicos, solicitavam-me, de tal modo eram pertinentes. Dou conta delas no livro porque o sujeito apaixonado que eu ponho em cena é um sujeito que tem uma cultura de hoje incluindo portanto um pouco de psicanálise que ele aplica a si próprio, de uma forma selvagem. Mas à medida que se desenrolava o discurso simulado do apaixonado, este discurso desenvolvia-se como a afirmação de um valor, o amor como uma ordem de valores afirmativos que faz frente a todos os ataques. Neste momento, ao sujeito apaixonado só resta separar-se do discurso analítico na medida em que este fala, é certo, do sentimento amoroso, mas de uma forma, finalmente, sempre depreciativa, convidando o sujeito a reintegrar uma certa normalidade, a separar «estar apaixonado» de «amar» e «amar bem», etc. Há uma normalidade do sentimento amoroso na psicanálise que é de facto a reivindicação do casal, do casal casado mesmo... Portanto a relação que eu tenho neste livro com a psicanálise é muito ambígua: é uma relação que, como sempre, utiliza descrições, noções psicanalíticas, mas que as utiliza um pouco como elementos de uma ficção não forçosamente credível.

Nunca, como ao lê-lo, tive tanto a impressão de que a escrita, em profundidade, está ligada à ética. Insistiu nesse ponto na sua lição inaugural no Collège de France. Gostaria que o retomasse...

É uma bela pergunta. Mas não consigo discernir bem essa questão e apenas posso dizer-lhe que sinto a escrita deste livro de uma forma um pouco especial. Dado o assunto, eu era chamado a proteger este livro. Para proteger este discurso que se pronunciava em nome do «eu», o que é, apesar de tudo, um risco, a minha maior protecção foi a língua pura ou, diria mesmo, precisamente, a sintaxe. Senti até que ponto a sintaxe podia proteger aquele que falava. É uma arma de dois gumes porque também pode ser um instrumento de repressão - e é-o muitas vezes -, mas quando sujeito está muito desarmado, muito exposto, muito só, a sintaxe protege-o. Este livro é bastante sintáctico, quer dizer, é uma escrita pouco lírica, bastante litótica, bastante elíptica, onde não há grandes invenções de palavras, neologismos, mas onde há uma atenção ao cerne da frase. É nesse momento que a escrita funciona de algum modo como uma moral que teria, de preferência, os seus modelos de agnosticismo, do cepticismo, das morais que não são morais da fé.


Roland Barthes, O Grão da Voz

1 comment:

Mariana R said...

ai que lindo! amo o 'fragmentos' e nunca tinha lindo essa entrevista em o 'grão', obrigada!